"(...)Não te equivoques, Nathanael, ante o título brutal que me agradou dar a este livro.

Nele me pus sem arrebiques nem pudor; e se nele falo por vezes de lugares que não vi, de perfumes que não cheirei, de ações que não cometi – ou de ti, Nathanael, que ainda não encontrei – não é por hipocrisia. E essas coisas não são mais mentirosas do que este nome que te dou, Nathanael, que me lerás, ignorando o teu, ainda por surgir.

Quando me tiveres lido, joga fora este livro – e sai. Sai do que quer que seja e de onde seja, de tua cidade, de tua família, de teu quarto, de teu pensamento. Que o meu livro te ensine a te interessares mais por ti do que por ele próprio – depois por tudo o mais – mais do que por ti."

André Gide em "Os Frutos da Terra". Paris, 1927.

terça-feira, 13 de abril de 2010

dilúvio

eu lá já estava sentado há algum tempo e por ter esperado mais do que eu esperava esperar, não me surpreenderia com nada. 7 horas e meia de chuva torrencial não foram o suficiente para lavar o que havia sido sujo. mas estiou e, antes do sol cruzar a janela de madeira semi-aberta, ela irrompeu pela porta da frente num silêncio simétrico à seu traje de luto.

sentou ao meu lado. desatou religiosamente o laço do tênis do pé esquerdo. descalçou. não difícil de prever, fez o mesmo com o tênis do pé direito. arrancou a meia encharcada. e n'um só movimento - perfeito, plástico - pôs os pés sobre o sofá, dobrando sutilmente os joelhos. na mesma liturgia, deixou a cabeça desabar no meu ombro. respirou fundo e nunca mais choveu.

2 comentários: