"(...)Não te equivoques, Nathanael, ante o título brutal que me agradou dar a este livro.

Nele me pus sem arrebiques nem pudor; e se nele falo por vezes de lugares que não vi, de perfumes que não cheirei, de ações que não cometi – ou de ti, Nathanael, que ainda não encontrei – não é por hipocrisia. E essas coisas não são mais mentirosas do que este nome que te dou, Nathanael, que me lerás, ignorando o teu, ainda por surgir.

Quando me tiveres lido, joga fora este livro – e sai. Sai do que quer que seja e de onde seja, de tua cidade, de tua família, de teu quarto, de teu pensamento. Que o meu livro te ensine a te interessares mais por ti do que por ele próprio – depois por tudo o mais – mais do que por ti."

André Gide em "Os Frutos da Terra". Paris, 1927.

terça-feira, 28 de agosto de 2007

Durma bem...



A indisposição pós-almoço nos enfastiava por completo. Sabe aquela preguicinha que consome todos os músculos e transforma as pálpebras em fardos quase insuportáveis? Então, eu resisti à mandriice. Já ela, não fazia muita questão de resistir, era mais interessante se entregar à fadiga.

Olhou para os dois lados. Buscava, despretensiosamente, um cantinho pra recostar. E encontrou. Um lugar calmo e aconchegante, entre o meu ombro direito e meu braço. Suavemente, dispôs o peso de sua cabeça e eu a auferi como se fosse uma láurea, com esmero de quem ostenta um andor. Pus minha mão direita sobre a sua mão, que me apertava o braço. Ela suspirou sutilmente, foi quase imperceptível para os meus ouvidos pouco apurados.

Lutei contra as leis da física para que meu braço parecesse o mais leve possível. Quis me tornar um lugar confortável para se estar. Tentei encher os pulmões de ar, para inflar o peito e ficar mais macio. Não consegui prender a respiração por muito tempo, logo, a almofada de ar e tecido adiposo murchou. Durante a minha vida, já quis ser muita coisa, de astronauta a jogador de futebol; mas acho que essa foi a primeira vez, que eu desejei ser um travesseiro.

Parece que não precisei fazer muito para que ela se acomodasse. Aninhou-se em mim rapidamente. E estando protegida de tudo e de todos, cerrou os olhos. Pousei minha mão sobre sua cabeça e acaricie-lhe os cabelos. Depois de alguns suspiros mútuos, ela adormeceu.

Por um instante, tive a sensação que o tempo parou e que tudo se calara pra acompanhar o movimento mínino da sua respiração. Nunca tinha visto ela daquele jeito. Ela relaxou, tirou o mundo dos ombros e cochilou. Estava ali, quieta, presa em mim.

Eu já não mais conseguia me concentrar, eu via a paz em seu rosto, dormindo junto com ela. Passei a ser mais sutil com os movimentos pra não perturbar o que ali havia se formado. Ela dormindo se torna completamente antagônica ao que é, quando acordada. Parecia tão frágil que eu me senti na obrigação de zelar pelo seu sono.

Meus olhos se embeveceram com tal visão. Mãos, cabelos, músculo, corpo; esplendoroso milagre das coisas sensíveis e suaves, feitas para serem desmedidamente amadas. Um poder mediúnico de fazer o bem sem muito esforço.

E eu observando aquilo tudo; ali, bem de pertinho, um entusiasta da beleza nas pequenas coisas. Talvez se ficasse um pouco mais de tempo, meus olhos marejassem. Mas ela acordou e deve estar se perguntando até agora o motivo do sorriso bobo estampado em meu rosto.

João Freitas tem 20 anos e tem dormido muito bem...




Nos Tímpanos: Ludov – Dorme em Paz

segunda-feira, 13 de agosto de 2007

Amor-Perfeito



As memórias da minha infância não são as mais felizes. Eu freqüentava a escola no turno da manhã e não aprendia nada além do que eu já sabia. Mas mesmo assim, eu era o aluno mais assíduo, esse era o único jeito de almoçar todos os dias. E a fome me deixava revoltado por não haver aulas nos finais de semana. As memórias da minha infância se resumem a tediosas tardes trancado em casa.

Meu pai ganhava a vida como caixeiro-viajante e minha mãe trabalhava como diarista. Não havia nenhum parente próximo ou algum vizinho disposto a cuidar de mim. E o bom-senso de meus pais fez-lhes perceberem que eu ainda era muito novo pra trabalhar. Logo, a solução era eu compreender a situação e passar as tardes em casa.

Não tínhamos televisão, mas não muito adiantaria ter, já que a companhia de luz cortara o nosso fornecimento por causa dos quatro meses de atraso no pagamento das contas. Mas tínhamos um rádio de pilha, o que também não muito adiantava porque ele não tinha pilha. Eu precisava de algum entretenimento. Por falta de melhores opções, minha rotina passou a ser espiar a rotina dos outros. Debrucei-me na janela para não morrer de tédio.

Eu morava num beco, então não eram muitas as pessoas que passavam em frente à minha janela. As pessoas que ali moravam tinham um semblante apático. Elas quase não sorriam, eram raros os momentos de felicidade. Depois de algumas semanas observando o marasmo de Dona Marlene tirando e pondo roupas da corda, vi que um homem se mudara para a humilde casa em frente a minha.

Era o homem mais pulcro que eu já houvera visto. Não falo de sua aparência física, essa por sua vez era modesta. Mas havia uma áurea envolvendo a sua pessoa. Era como se seu corpo exalasse ledice. Meus olhos identificaram que era um ser diferente de qualquer outro. Talvez fosse um anjo, ou um rei de algum império. No que quer que ele fosse, tinha algo especial no que fazia.

Embora a casa para onde aquele homem tinha se mudado fosse humilde, ao lado esquerdo tinha um quintal razoavelmente grande. Ele tratou de, no primeiro dia após sua mudança, cortar todo o mato que cobria aquela terra. O que despertou ainda mais a minha curiosidade e o meu encanto.

No dia seguinte, vi aquele homem com um macacão surrado e um chapéu de palha que mal lhe cabia na cabeça. Ele se dirigiu ao quintal, regou toda a terra e com sua enxada lavrou o terreno. E depois com muito zelo, distribuiu as sementes pelo terreno. Eu estava aflito para saber que diabos aquele homem estava plantando. Enquanto seu cultivo demorava a se desenvolver, a minha curiosidade crescia como erva daninha.

Passadas cinco semanas, estava lá uma planta estranha. Não se parecia com uma alface, muito menos com uma laranjeira. Eu me decepcionei, achei que aquele homem faria algo extraordinário e o que acontece? Ele cultiva uma planta que, por tamanha a minha consternação, defino como estranha. Era muito feia, o galho era fino e as folhas pequenas, de um verde nebuloso.

Estava muitíssimo decepcionado com o que tinha acontecido. Decorreu todo um mês, e eu não ousara a me aproximar daquela janela. Sentia raiva daquele homem que fez despertar em mim um encantamento e algo que poderia, pelos mais otimistas, ser chamado de esperança. Não queria acreditar que aquele homem era igual às outras pessoas, que a única coisa de especial dele era fruto de minha imaginação.

Mas eis que um dia, ao acordar eu sinto algo diferente no ar. Um sexto sentido me fez correr até a janela. Cada passo que eu dava em direção a ela fazia-me distinguir com mais clareza o que de diferente havia no ar. Era perfume! Então eu abro a janela, e sobre aquela planta, que há poucas semanas era horrenda, está uma flor. A flor mais linda que eu já pudera ter visto. Suas cores saltavam aos olhos. Suas pétalas eram de um roxo único que ofuscavam a visão e no centro um singelo ponto amarelo. E era como se aquele odor dançasse pelo ar, causando furor nas pessoas que estivessem nas redondezas.

Aquilo havia me enternecido tanto, que passei a observar as flores e aquele homem cada vez mais de perto. Passei a ficar no quintal, depois sentado na minha calçada, depois fui para a calçada do homem, e uma semana transcorrida, eu já estava no seu quintal cheirando de perto aquelas flores.

O homem se aproximou de mim. Pude ver em suas mãos os calos de quem a vida toda empunhou uma tesoura, mas que não perdera a ternura para brandir uma flor. E com sua voz rouca e sensível afirmou como as flores eram lindas. E eu perguntei:

_ Como se chama?
_ Amor-Perfeito.
_Como?
_ Essa flor se chama Amor-Perfeito.

Rindo, esclareci:

_Não a flor. O senhor...
_Ah sim, claro. Nicanor.

O nome da flor seria o que eu perguntaria logo em seguida. Mas como ele já tinha respondido, Esse foi o nosso único diálogo.

Passei a acompanhar o trabalho de Nicanor todas as tardes. Eu carregava sacos de terra, regava algumas vezes as flores, quase não nos falávamos, mas eu sabia o que ele precisava ou o que as flores precisavam. Todo o final de tarde, ele fazia um café quentinho, me dava uma xícara e me contava algumas estórias sobre o Amor-Perfeito

Todas as estórias eram sensacionais. Ele contava que a flor tinha origem européia; em francês, anuncia “le pansée”, o pensamento, o pedido de retorno, a força de atração que o pensamento exerce sobre as coisas,inclusive sobre o amor. Essas estórias serviam como ilustração para o perfume que eu sentia a cada suspiro.

Entre outros goles de café, me confessou que no século XVII, na Inglaterra, era costume entre as mulheres oferecer um pouco de terra dos amores-perfeitos aos seus maridos marinheiros, para que, no longínquo do oceano, eles não se esquecessem do amor que ficara nos portos.

As estórias, o café, o cheiro e a coloração das rosas, tudo havia me inspirado. E eu decidi trazer aquilo para o meu quintal. Arei meu quintal, irriguei corretamente, dispus com toda a cautela as sementes pela terra e sabia que agora era só questão de esperar. Passaram-se nove semanas, os botões apareceram, eu soube que na manhã seguinte, as flores já estariam ali.

Amanheceu o dia, e eu corri para ver a minha obra. Fiquei consternado. Antes mesmo de nascerem, todos os botões de flores haviam murchado. Achei que poderia ter sido por causa do calor forte que fez nesse dia. Então repeti o procedimento, esperei por volta de quatro semanas para os novos botões aparecerem. E na véspera eu já não me lembrava do que tinha acontecido na tentativa anterior. Porém no dia seguinte, vi os botões murchos novamente.

Eu queria uma explicação para aquilo tudo, fui até a casa do Nicanor. Contei tudo a ele, todo procedimento, etapa por etapa, ele balançava a cabeça positivamente, confirmando que tudo que eu havia feito estava certo. Então eu disse, aflito:

_ Me diga então, por que minha flor não nasceu?

Ele respondeu profeticamente:

_ Você não deu as perfeitas condições para ela.
_Como assim? Eu dei tudo que ela necessita...
_Meu jovem, para cultivar o Amor-Perfeito não basta apenas dar o que ela necessita, mas dar o que ela quer e se possível mais que isso... Converse com ela, dedique um pouco do seu tempo, trate-a como prioridade, dê um pouco de atenção... Elas se comoverão e se expressarão da melhor maneira possível, com flores e perfume.

Eu já tinha entendido a mensagem e o que eu precisava para cultivar a tão almeajda flor. Já tinha dado as costas para Nicanor, e caminhava em direção a minha casa. E ele me deu mais um conselho:

_Tente isso com as pessoas, provavelmente dará certo...

João Freitas tem 34 anos e é expert em plantar feijão em algodão...




Nos Tímpanos: Chico Buarque - Nicanor

domingo, 12 de agosto de 2007

Legado



Pai,

Ainda não aprendi a andar de bicicleta e acho que realmente não aprenderei. Não tenho lembrança de termos batido bola ou soltado pipa alguma vez. Isso pode ter me atrapalhado algumas vezes na infância; mas calma, não será necessário pagar a conta de nenhum analista.

A ausência desses eventos poderia ser deprimente. Mas não é. Você pôde proporcionar tantos outros momentos que suprem e compensam essa ausência. Contigo pude saber o que era certo e o que era errado. Sempre soube me fazer aprender a lição – não a de colégio, a da vida mesmo – com esse seu bom humor único e inconfundível.

Nunca levantou a mão pra mim ou me deixou alguma vez de castigo. Até porque isso nunca foi necessário, pudeste me educar sem fazer uso da rudez ou da agressividade. Você sempre me mostrou o melhor caminho, dispensando a superioridade patriarcal; tratando-me de igual pra igual independente da idade que eu tivesse. Sendo sempre, acima de tudo, um grande amigo.

Nós podemos conversar livremente, sem o ultrapassado conservadorismo que ainda rege algumas famílias. É muito bonito ver a dedicação com que você mantém sua família, sem precisar ser intimidador e sisudo. Guardo com muito carinho nossas árduas disputas no vídeo-game, em que você sempre perdia. Te confesso que pensei várias vezes em deixar você ganhar... Mas não, não é assim que se educa um pai.

Tudo que eu venho conquistando eu devo a você e a minha mãe, que são o meu porto. Vocês são os alicerces dessa minha construção, graças a vocês, eu me sinto seguro pra tentar sempre alçar vôos mais altos. Honrando os seus esforços para com a minha criação com conquistas cada vez mais significativas.

Agradeço muito pelo voto de sua confiança. Por nem sempre acreditar nas coisas que eu vá fazer, mas acreditar em mim, acreditar que eu possa fazer. E me dar o seu imparcial apoio paterno.

Eu vejo que cada vez mais eu me pareço com você, fazendo as mesmas coisas, pensando da mesma forma, e infelizmente, cometendo os mesmos erros. Tentarei sempre corrigi-los, quero a cada dia me tornar uma pessoa melhor. Farei sempre o máximo para continuar a ser razão de seu orgulho.

Vejo o seu desgaste com as injustiças da vida e do trabalho. Vejo todos os dias, esse fardo que você é obrigado a carregar. Eu queria poder carregar um pouco desse peso, te proteger dos socos que a vida insiste em nos dar. Mas não posso fazer isso. Embora não pareça, ainda sou muito fraco e frágil. Mas uma coisa eu lhe prometo, eu vou vencer nessa vida. Todos os meus esforços serão para nunca decepcionar você e minha mãe. Farei jus a tudo que vocês me ensinaram.

E pai, não sei porque, mas não foram muitas as vezes que eu lhe disse “te amo”. Então, aproveito a data para dizer isso. E quero que saibas também que sinto muito orgulho do que você é. Que um dia eu possa ter uma índole tão exemplar quanto a sua e da minha mãe.

Feliz dia dos pais,

Te amo.

João Freitas tem 47 anos e tentará ser para o seu filho o que seu pai é para ele.




Nos Tímpanos: U2 – Sometimes You can’t make it on your own

domingo, 24 de junho de 2007

Índole


“tão preocupado em rosnar, ladrar e latir
então esquece de morder devagar
esquece de saber curtir, dividir.”

-Elisa Lucinda


Eu sabia, desde o começo, que meus braços nunca seriam rede suficiente para o trapézio que é a inquietude dos seus dezoito anos incompletos. E que eu não ficaria aqui para ver tudo desabar, porque eu desabaria junto. Não sou forte, querida; não suportaria a cena.

De uma estranha forma, isso passou a me dar segurança; fez-me saber que nunca estaríamos juntos por comodidade, mas sim por que a vontade imperava. Sim, querida; continuaríamos por que ainda não sugamos tudo que podíamos, por que eu ainda guardaria um sorriso a mais para pôr em seu rosto.

Não me preocuparia mais com problemas pequenos e tentaria não me importar com os grandes também. Veria que todas as discussões não nos levam a nada. Teria certeza que ver você sorrir era o que me bastava, querida. Então, antes de cobrar alguma coisa, daria tudo. E se ainda faltasse algo, prometeria até o que eu não tenho.

Ficaríamos juntos para ver terminar mais uma estação, quiçá esperaríamos a próxima primavera. Sentaríamos, lado a lado, te esticaria a mão para ler-te a palma. Só não veria um romance, se os meus dedos estivessem apertando os seus, estreitando as nossas mãos, num devagar e urgente gesto de afeto.

Querida, eu começaria a me preocupar menos com os horários. Sim, faria questão dos atrasos, já que a expectativa da espera torna os encontros mais interessantes. Alias, jogaria meu relógio janela a fora. Não teria hora para me soltar de seus abraços, não teria hora para partir. Viveria sem pressa de ser feliz.

Evitaria todos os erros, querida. Erraria por achar que tudo pode ser perfeito. Mas logo em seguida, saberia que a perfeição é inatingível, mas que estava determinado à chegar mais perto disso possível. Teria humildade para assumir a culpa, juraria que não iria acontecer de novo, sabendo que em breve, faria besteira novamente.

Pediria desculpas uma vez mais, por erros já passados, por erros já perdoados, por erros que ainda não houvera cometido. E se em um abraço, querida, você me perdoasse, eu seria pela a eternidade de um segundo a pessoa mais feliz do mundo.

Isso tudo porque, a partir de um determinado momento, eu aprendi a sentir, querida. Porque palavras que antes soavam ocas, agora fazem todo sentido. Como se antes, eu vivesse num eterno e generalizado déjà vu, tendo a sensação de que tudo que eu dissesse, já tivesse sido dito, pensado e esquecido.

Porque agora, menina de rosa, trouxeste cor para o filme preto e branco em que eu estava imerso. Tantos parágrafos por que ainda tenho dificuldade de resumir meus sentimentos na frase de três palavras mais clichê do planeta.

João Freitas tem 17 anos e aprendeu a sentir...



Nos Tímpanos: Batone - Acidente

sexta-feira, 18 de maio de 2007

Prêt-à-Porter


“E quando a derradeira, enfim, vier,
Nesse corpo vibrante de mulher
Será o meu que hás de encontrar ainda”

- Florbela Espanca


Era uma tarde sem sol, mas fazia calor. Os passos estavam mais lentos para o tempo sentir preguiça em passar. E caminhávamos, sem querer saber pra onde iríamos; a mim não importava o que fazer, mas com quem fazer. Estar contigo é o bastante. Mesmo que miinha mão estivesse sobre o seu ombro esquerdo, era sempre você quem traçava os nossos caminhos.

E era só isso que eu queria, que me levasse enquanto nossos corpos estavam leves. Não queria que você me levasse a mal, mas sim, a sério. Às vezes, precisamos nos jogar de um precipício, sem pensarmos muito. E desfrutar da queda, aproveitar os instantes em que seu corpo está livre, deleitar-se enquanto o chão não encontra os nossos pés.

Mas minha querida, quando não dá mais para flutuar, o chão, infelizmente, é a nossa única opção. Então, os problemas vêm à tona. Percebo que os relacionamentos são perecíveis e o tempo, que antes era preguiçoso, agora se esvai num piscar.

Estou agora à mercê dos seus delírios, dependendo do sol, da chuva e das suas benevolências. Recusando os freios, os veios, os limites; eu aqui de baixo, gritando e sacudindo os braços: “Menina, desça já da sua razão.” Infelizmente, você nem me escuta.

Porém, certamente, guardarás o meu toque em algum dos escaninhos de teu corpo. E se um dia resolver tirar poeira, a nostalgia incendiará a tua alma, tornando a saudade latente. Se precisar de mim, estarei aqui, no meio dos empoeirados, esperando, esperando por uma tarde sem sol.

João Freitas tem 29 anos e tenta pensar no agora...



Nos Tímpanos: Los Hermanos – Casa Pré-Fabricada

domingo, 29 de abril de 2007

Idiossincrasia


“E se a nossa alma valeu alguma coisa,
é porque ardeu com mais ardor do que outras”.

-André Gide

Gosto de acreditar que, para me divertir, eu só precisaria abrir a porta e sair. Mas as coisas cresceram, a ponto de eu não conseguir mais me desvencilhar do que nunca foi recíproco. E mesmo assim, ainda prefiro esse clima de cinema seiscentista.

E insisto em me iludir. Mesmo que os laços afetivos não atem ninguém, você acaba optando por esse cárcere contente. Quando se têm alguém já tão imerso no seu quotidiano, é difícil imaginar sorrisos privados da agradável companhia. Tantas pessoas, tantos rostos com tantas histórias para contar; e eu não quero nada mais que aquele rosto familiar com as mesmas carochinhas de sempre.

Nos dias em que não vejo a terra de onde brota a minha alegria, fico perdido. Sou tomado por esse louco lirismo, cheio de clichês e romantismo barato e me ponho a escrever. Pressentindo, sentindo, ressentindo a falta que você fará, faz e fez.

As páginas dos meus livros não vêem mais os meus olhos. As cordas da minha guitarra sentem falta dos meus dedos. As capas dos CDs sumiram embaixo de tanta poeira. Maldito van Gogh, pendurado na parede, rindo dos meus girassóis...

Dessa forma, acabo me surpreendendo comigo mesmo. Sem ter tempo pra nada, exceto pra alguém. Não esperava me mostrar tão leal e afável, repudiando tudo que possa pôr em risco o que durou, e ainda dura, mais tempo do que eu acreditava. Não sei como se chama isso.

Só sei que resisti e ainda resisto às tentações. Sem precisar errar para saber o que sinto...

“eu vi como há muito tempo não via a poesia sorrir pra mim. sorri de volta, corri com meu cavalinho pra chuva e achei que assumir o risco era menos ridículo do que de fato é. eu vi métrica no teu texto, vi semiótica nos teus códigos, vi um encontro onde você viu exercício de estilo.”
-Leandro Id Lascado

João Freitas tem 26 anos e só escreve nos fins de semana...




Nos Tímpanos: Moreno +2 – Enquanto Isso

domingo, 22 de abril de 2007

Saudosismo


“Felicidade se acha em horinhas de descuido”
-João Guimarães Rosa

A constante insatisfação do homem é tão certa como a convicção de sua morte. Estamos sempre querendo mais da vida, mais de nós, mais dos outros; e o que falta embaça a nossa vista para o que já temos. Mas quando perdemos algo, nós somos tomados por uma estranha melancolia, semelhante a um arrependimento.

Eu sei muito bem como funciona e poderia dizer como é isso, mas vem logo a sóbria e eloqüente razão, que manda eu me calar e sorve toda essa falsa consternação. Isso deve ser instinto, coisa de sobrevivência.

Quando sua vida muda muito em muito pouco tempo, você acaba aprendendo a se acostumar com tudo. Embora eu diga, que no momento, estou contente, a saudade vem e me faz sentir falta de outros tempos.

As velhas amizades, as risadas incontroláveis, a libido óbvia, a cumplicidade, a tal fugaz vulgaridade deixam boas lembranças. E se eu vier a chorar por essa saudade, não vai ser por tristeza, já que agora não sinto nenhuma, é por não poder reviver tais momentos.

Eu sinto saudade dos tempos de colégio. Sinto saudade do futebol. Eu sinto saudade de um tempo em que a felicidade não batia a minha porta, mas entrava correndo pelo meu quintal. Eu sinto saudade dos amigos que o tempo não vai deixar se afastarem. Sinto saudade de quando eu podia viver impunemente. Eu sinto saudade do tempo que as vulvas se abriam como sorrisos...

“(...) repentinamente, nos damos conta de que os enigmas da Via Láctea são pequenos demais comparados com aqueles das pessoas que vemos todo dia. Só que nossos olhares ficaram baços, e não percebemos o maravilhoso ao nosso lado. Se fôssemos tomados pelo fascínio, então pararíamos para ver e veríamos coisas de que nunca havíamos suspeitados.”
- Rubem Alves

João Freitas tem 19 anos e não sabe se saudade é um sentimento bom ou ruim...




Nos Tímpanos: Os Paralamas do Sucesso – Seja Você

sábado, 7 de abril de 2007

Room on Fire


“Ela veio toda precisa, senão toda necessária
em sua curtida saia
de flores e sorrisos,
hipnótico riff
de guitarra.”
- Caio Carmacho


Por estar sempre flutuando, ela precisava tirar as sandálias para poder notar o chão. Juliana fazia isso para sentir o mundo girar, mesmo que nem sempre fosse envolta dela. E nas noites em que o sono a consumia, ela não fazia muita resistência, ia logo se deitar. E ao tirar os pés do chão para repousar em sua cama, eu tinha a breve impressão do mundo parar.

Ela não se apegava a nada, mas sempre desejava algo novo, algo a mais. Queria ter a Lua, mas talvez se a tivesse, não daria tanto valor. De qualquer forma, era melhor assim, talvez seu ego não permitiria as noites luminosas.

Até hoje, eu não sei se, realmente, nos dávamos bem ou se apenas nos suportávamos; se é que isso importava. Mas de fato, a comodidade me incomodava. A morbidez tomava conta de nós dois nos dias em que o sol não passava de uma lacônica lembrança de ontem. Malditos dias nublados...

Como se seu ar de superioridade não fosse o bastante para me incomodar, ela pousava seus pés sobre a mesa de centro. Ela procurando novas maneiras de me enfadar, eu procurando o long-play dos Rolling Stones que ela tomou emprestado.

Sempre tentava esquecer que, um dia, estivemos juntos. E que se, agora, dividimos o mesmo teto, é por que nenhum dos dois tem condições de assumir o aluguel. Estamos condenados à nos fazer companhia.

E nada mais me irrita que a sua maneira de achar que tudo está bem. O mundo está em guerra, tudo bem, ela não queria sair de casa. A água vai acabar, tudo bem, ela prefere Dry Martini. A sala está pegando fogo, tudo bem, ela vai continuar penteando seu cabelo.


João Freitas tem 26 anos e ainda não encontrou o LP dos Rolling Stones...





Nos tímpanos: The Strokes - Reptilia


domingo, 25 de março de 2007

Et Cetera



“é nela que os dentes encontram
o que os mantém afiados
com ela é que a língua elabora
a doce palavra”
- Paulo Henriques Britto


Não sei se estava dormindo ou se estava desperto, mas, independente disso, a menina de rosa voltou para perpetuar meus sonhos. E dessa vez, ela voltou diferente; os seus olhos morenos traziam algo desconhecido, que de certa maneira, me atraia e me fazia recear.

Ela caminhava lépida; seus passos eram calmos, como se não se importasse com os carros buzinando. Era ela que dava sentido aos sinais de trânsito e as calçadas, se não por ela, não haveria motivo de existir as avenidas. A menina de rosa só queria passear. Eu queria apenas decifrar o código preguiçoso daqueles gestos sutis.

As palavras que eu dizia pareciam não fazer muito sentido, a menina de rosa não reagia a nenhuma delas. E era tudo genuíno, sincero, mas ainda pouco para aqueles ouvidos. Sentia-me piegas, sorria para disfarçar. Infelizmente, não adiantava, sobravam os legítimos sentimentos, ainda sem resposta.

O seu cheiro era inebriante. Da mesma forma, que me recordo do gosto do Doce de Abóbora, me recordo daquele perfume usurpado das flores. Sinto-me capaz de, a 60 milhas distantes, reconhecer tal essência.

Por onde ela passava, atraia as atenções. E com todos os olhos nela postos, a palavra privacidade se tornara inconcebível. Eu não me importava com tal indiscrição, mas os olhares alheios a incomodavam. Embora tentássemos fugir, era impossível; sempre haveríamos de encontrar um par de faróis a nos vigiar.

Mas chegou uma hora, que não deu mais para evitar o toque, e esses olhares deixaram de ser tão incômodos. E, a essa altura, é inevitável, sucumbir ao desejo.

E os olhares indiscretos terão visto a felicidade, mas mesmo assim, incrédulos, terão que reticenciar todos os seus pensamentos...


“E todos vão falar,
Dar nomes pra mim.
Votar minha fé,
Que eu sou o teu quintal.
Se alguém vier falar,
Não brigue por mim.
Só diga que sou
Um problema seu...”
-Sérgio Filho


João Freitas tem 36 anos e está muito bem, obrigado...




Nos Tímpanos : Jorge Ben Jor - Porque É Proibido Pisar na Grama?

sexta-feira, 9 de março de 2007

(Con)sentimento



"A mulher que gratuitamente
me mostra as tetas
só quer
naturalmente
ser reconhecida"
- Caio Carmacho

Como todas as coisas têm fim, a nossa noite não podia ter sido diferente. Mesmo que tentássemos retardar o amanhecer com incessantes caricias, os inconvenientes raios de sol acabavam entrando no quarto pelas venezianas. E nas manhãs, as despedidas são inevitáveis; já estava na hora de recolher as roupas jogadas no canto do quarto, esquecer a fugaz vulgaridade, fazer a barba e dizer “até logo”.

Já passara uma semana e eu ainda não sabia o nome dela. Talvez ela tenha dito, mas não fazia muita diferença. Quando passávamos por aquela porta, nada mais era relevante. Não era eu, nem ela; éramos nós. E isso é o que importava.

As noites seguiam à batidas sincopadas do blues de Miles Davis. De vez enquanto buscávamos sorrisos dentro de garrafas e gargalhadas no vômito do fumo. Mas sabíamos que os nossos melhores entorpecentes se encontravam nas nossas gargantas secas, no encontro das nossas bocas cruas, no suor das nossas carnes e nas suas unhas cravadas em minhas costas.

E durante vinte e seis dias, os nossos encontros se sucederam desta maneira. As nossas noites pareciam cada vez mais curtas. Os seus abraços apertavam não só o meu corpo, mas também a minha alma, que a essa altura não mais se distinguia da dela.

Não nos dávamos mais por satisfeitos tendo apenas a noite como cenário, queríamos o dia inteiro. E mesmo depois de ter o Sol e a Lua como voyeurs, continuávamos insatisfeitos. Já tínhamos tudo e não sabíamos mais o que querer.

Mas para variar, acabo cometendo um daqueles deslizes imperdoáveis. E antes de pensar, a língua febril e delirante murmura ao pé do ouvido alheio: “Como se chama?”. E pronto. Já está tudo acabado.

"Só porque, de súbito exigentes e duros, quiseram ter o que já tinham. Tudo porque quiseram dar um nome; porque quiseram ser, eles que eram."
- Clarice Lispector

João Freitas tem 32 anos e prefere noite a dia.





Nos Tímpanos: Jards Macalé - Movimento dos Barcos

sexta-feira, 23 de fevereiro de 2007

Doce de Abóbora



"Se queres sentir a felicidade de amar,
esquece a tua alma"
Manuel Bandeira

Nada se equipara tanto a um romance quanto o doce de abóbora. Não falo apenas do delicioso gosto que ambos têm, mas sim de como eles se parecem em tudo. Assim como a dona de casa procura a abóbora certa para fazer o doce, eu sempre busco minha próxima alma-gêmea. Como ninguém é perfeito, de vez enquanto, a dona de casa compra uma abóbora podre e eu só consigo encontrar almas distintas. Acabamos perdendo bastante tempo nessa busca pelos ingredientes perfeitos.

Mas eis que chega o tão esperado momento. A dona de casa avista aquela bela abóbora e eu me encanto por aquela menina de rosa. Não temos dúvidas, sabemos que encontramos o que queríamos. E temos certeza que, até então, não se vira abóbora mais bela e menina mais doce.

Eu sentia quando um romance estava pronto para se consumar... Da mesma forma que a cozinheira prendada sabe quando o doce de abóbora está no ponto, eu sabia que estava a ponto de me apaixonar. E os amantes e as cozinheiras sabem muito bem que tudo tem que ser na medida certa, um pouco mais de açúcar ou de afeto pode pôr tudo a perder. Mas não basta apenas acertar na medida. Você precisa ser ousado, uma pitada de sal e um pouco de desdém pode dar um gosto especial ao doce e ao romance.

Para não desandar, você precisa pôr no fogo alto e mexer bastante. Nessa fase, você precisa ter cuidado com as moscas que, certamente, já estão ao redor. Vigie sua menina e ponha as moscas pra correr. Não se distraia, se não você acaba queimando o doce e seu filme.

A essa altura, podemos dizer que o doce já está pronto e o romance concretizado, mas não podemos saber se deu certo enquanto não provarmos. Eles ainda estão muito quentes, mas mesmo assim não resistimos, provamos um pouquinho. A pressa só me faz queimar a língua.

Agora já se pode comer do doce e saborear os lábios da menina de rosa. Quem come do doce, come até se fartar ou até então acabar. E eu só quero me afogar na saliva alheia, como se quisesse matar uma sede de 60 dias. Só me satisfazendo após sorver a última gota do néctar mais puro da amada. A dona de casa tem certeza que nunca fez um doce tão gostoso. E eu juro nunca ter amado tanto...

João Freitas tem 25 anos e acha que só existe uma coisa mais gostosa que doce de abóbora...





Nos Tímpanos: Apollo Nove - Traz um Alívio

quinta-feira, 8 de fevereiro de 2007

Contra o Tempo



"No anfiteatro, sob o céu de estrelas

Um concerto eu imagino
Onde, num relance, o tempo alcance a glória
E o artista, o infinito"
Chico Buarque

O cheiro da coxia me inebria... Acho que esse é o último e verdadeiro motivo para não ter abandonado o teatro. Depois de 47 anos em cima do palco, deixei de ser artista. Tornei-me uma daquelas pinturas à óleo que nunca secam e que o destino, agora com os pincéis na mão, se encarrega de a cada dia pôr uma ruga a mais.

O desejo de ser ator vem de antes do meu nascimento. A minha mãe fazia teatro amador e sonhava em um dia vir a ser uma famosa a triz de cinema. Talvez seu fracasso latente tenha me feito seguir essa carreira. Admirável ofício que os ignorantes julgam como ócio.

Desprezando toda a minha insistência, a sorte nunca foi alheia ao meu sustento. Não falo das catástrofes inusitadas que ocorreram durante as apresentações, porque isso acontece, pelo menos uma vez, com todos os atores. A minha insatisfação se dá por eu não ter atingido o sucesso, por estar condenado a ser eternamente um ator medíocre de teatro.

A minha decepção aumenta junto com a idade. Já estou velho para participar de “Malhação” e nem cairia muito bem um homem de minha idade ser chamado de “ator revelação”.

Acho que essa é a parte mais difícil da vida, seus sonhos não foram realizados e você já não tem mais tanto tempo para sonhar outros sonhos. Resta agora esperar minha morte e lamentar o meu não-reconhecimento.

É o final de mais um espetáculo, um daqueles cheios de clichê e que não dizem muita coisa. Só se ouve tímidas palmas, mais por educação do que por admiração. As luzes se apagam lentamente e a música termina em fade-out. Não se sabe mais o que é vida e o que é ficção.

João Freitas tem 66 anos e continuará vivendo até o espetáculo terminar...





Nos Tímpanos: Mombojó - Deixe-se Acreditar

sexta-feira, 2 de fevereiro de 2007

Meline (projeções futuras)


_ Meline Silva.

Risos na sala de aula...
_ É Milene, professor. Presente.

Pobre Milene, toda 4º feira tinha que corrigir o professor Manoel. Ela até achava “Meline” bonitinho, mas queria ser chamada pelo seu verdadeiro nome. Devia ser algum tipo de vingança; só porque ela preferia Matemática ao invés de Geografia, o professor pregava essa peça nela toda semana.

Milene sempre foi muito estudiosa, dizia que estudava muito. Mas pra mim, isso não era verdade, ela era inteligente e ponto. Os anos em que eu estudei com ela foram os mais difíceis. Ela era insuportável. Enquanto eu procurava a fórmula para resolver tal problema, ela já tinha a resposta do problema seguinte. Todos, inclusive eu, tinham algum motivo para odiá-la.

Mas mesmo assim, não conseguíamos. Ela cativava todos a sua volta, estava preste a nos ajudar em qualquer hora. Se alguém não entendesse a matéria, não era o professor que sanava as dúvidas e sim Meline... É...Quer dizer... Milene...

_ Milene, você vai prestar vestibular para que?
_ Engenharia... Ainda não sei qual, mas é Engenharia...
(Uffa, ainda bem que desistiu de Matemática)

Como não podia ser diferente, ela terminou o Ensino Médio e passou no Vestibular na 1º tentativa. E a essa altura, já estava decidido. Era Engenharia Metalúrgica, ela enchia a boca pra falar. Sua família estava radiante com sua conquista. E ela também, o orgulho de si mesma transbordava, contagiando a todos.

Para cursar sua Faculdade, ela teve que se mudar para Volta Redonda. Esse sacrifício era necessário. A abstinência de seu lar, de sua família, de seus amigos era corrosiva. A degradava a cada semestre.

Ela começava a perceber quanto tempo perdeu discutindo, brigando, se preocupando com coisas ínfimas; podendo ter aproveitado todo esse tempo ao lado das pessoas que ela realmente ama. Mas isso, ao invés de enfraquecê-la, só fortalecia. Embora sofresse com a distância, estudou para que conseguisse se formar o mais breve possível.

E conseguiu. Com 23 anos, formou-se sem perder, sequer, uma matéria. Seu magnífico desempenho na faculdade garantiu-a um emprego. Para sua felicidade, na cidade onde viveu a maior parte de sua vida. Meline se tornou Chefe de Pesquisa do Centro de Tecnologia da Refinaria de São Gonçalo e Itaboraí.

Essa engenheira chegou tão longe na vida, por que tinha suas convicções, acreditava em si mesma e que, por nenhum motivo, desistia dos seus sonhos.

Mas de fato, Milene é uma grande contradição. CDF legal? Isso existe? Sim. Claro que existe, tem até amigos.

Sou um deles!

João Freitas tem 17 anos e é vidente de vez em quando...





Nos Tímpanos: Mart'nália - Chega


segunda-feira, 15 de janeiro de 2007

Varal



“A curiosidade é mesmo feita do que já se conhece com a imaginação.”
- Chico Buarque

Eu tinha pouco mais que um metro e meio, não chegara, ainda, a completar dez anos e já havia me cansado de jogar bola com os meninos da rua. Aquele campo tornou-se algo obtuso, totalmente dispensável para a minha existência... Era como se algo maior me atraísse... E atraia. Chamava-se Luiza – vinte centímetros mais alta. Meus sonhos a tornavam ainda maior. Acamado, poderia vê-la caminhar impunemente pelas ruas, fazendo com que os arranha-céus sentissem imensa inveja de sua postura e elegância. Mas o sol não tardaria a enobrecer o dia e, logo, Luiza deixaria de fulgurar nos meus sonhos.

Sim, eu era apaixonado por Luiza. Era um menino e amava aquela mulher. A diferença entre as nossas idades era de nove anos. Mas acreditava que daqui a algum tempo essa diferença não importaria. Grande tolice...

Passaram-se seis anos e eu ainda estava a espiar. Do meu quarto, eu via, perfeitamente, os seus fundos, ou melhor, os fundos da casa dela. Eu acordava cedo todos os dias para espiar ela tomando banho. Não dava para se ver muita coisa pelo basculante do banheiro, o vidro canelado distorcia o rosado dos seus seios, mas a minha imaginação tratava de reconstituí-los perfeitamente. Nos fins de semana, ela lavava as roupas. Eu torcia para que chovesse para ela não pôr as roupas no varal; ver aquelas roupas sem a dona fazia-me imaginar a dona sem elas...

O que me deixava esperançoso era ela não ignorar a minha existência. Quando víamo-nos, ou melhor, quando ela via-me, me cumprimentava com um sorriso estampado no rosto. Eu até achava que poderia haver algum interesse dela por mim. Mas percebi que não havia quando a vi falando, dessa mesma forma, com o feirante, o peixeiro, o pedinte... A danada era simpática por natureza.

Para a minha infelicidade, Luiza se mudou para outra cidade, por causa do emprego que havia encontrado. Demorei a me conformar que nunca mais a veria. Acabei fazendo tudo para esquecê-la, acho que acabei conseguindo...

- Se isso fosse um filme ou uma novela, entraria agora uma vinheta de “16 anos depois” -

Eu acabei me formando em odontologia e a essa altura já estava casado, vivia monotoname..., quer dizer, perfeitamente com a minha esposa e filhos. Não me lembrava mais de Luiza, sua imagem estava perdida em algum desses armários empoeirados de minha mente. Mas eis que um dia, caminhando pelas ruas da Urca, meus olhos se perdem dentro do quintal de uma casa antiga. E por ironia – ironia não, insensatez - do destino, como em um déjà-vu, reconheci aquelas roupas no varal, obviamente, não eram as mesmas roupas, mas eu sabia a quem pertenciam.

Não hesitei; bati palma, toquei a campainha, gritei o seu nome. De dentro da casa, sai o meu sonho de menino, não consigo perceber as mudanças em sua aparência, talvez por que eu já sonhava com ela desta forma. Luiza me reconhece e me convida a entrar, eu não esperava tanta receptividade, talvez a sua solidão tenha feito dela uma anfitriã bastante agradável.

Ao vê-la, a minha paixão veio à tona. E agora, eu não sentia mais medo. Confessei que a amava e que, talvez, ainda a amasse e que eu estava disposto a largar tudo por ela. Luiza abriu um sorriso e, para a minha surpresa, disse que também gostava de mim, e que não mostrou seu interesse preteritamente por causa da diferença de idade. Já havíamos nos entregado ao desejo recíproco e há essa hora já nos enroscávamo-nos em seu sofá. E mesmo com ela em meus braços, não me detive a pensar que a diferença de idade continuava a mesma e que... que... que... Nada! Quando vi os seios rosados, parei de pensar.

"Como defini-la quando está vestida, se ela me desbunda como se despida? Como defini-la quando está desnuda, se ela é viagem como toda nuvem? Como desnudá-la quando está vestida se está mais despida do que quando nua? Como possuí-la quando está desnuda, se ela toda é chuva, se ela toda é vulva?"
- Ferreira Gullar

João Freitas tem 32 anos e sonha todas as noites





Nos Tímpanos: Mundo Livre S/A - A Música que os Loucos Ouvem(Chupando Balas)

segunda-feira, 1 de janeiro de 2007

Ana Nova



4...3...2...1...

Os fogos da praia do Flamengo fizeram Ana vibrar. Ria com a boca aberta e o sorriso dela se esticava cada vez que o estrondo fosse maior. Eu estava deveras confuso, não sabia se olhava para o céu, agora iluminado, ou para o céu da boca de Ana. Até que então decidi olhar para o que fosse mais estonteante. Continuei confuso...

Ela ia apenas molhar os lábios com um pouco de champanhe. Quando se deu conta, já estava abraçada com a garrafa e bebendo-a pelo gargalo. Deve ter me dito “Feliz Ano Novo” umas cinco vezes. Quando se dava conta que já havia dito, dava uma saborosa risada que me fazia rir junto.

Ela gritou: “Ano Novo, Vida Nova”, brindamos com copos plásticos e nos sentimos obrigados a fazer "Tin-Tin" com a voz... Aquilo não fazia muito sentido pra mim. Por que Vida Nova? Será que ela não está satisfeita com a vida, a ponto de todo dia 31 de Dezembro desejar uma nova? O problema não estava com a vida e sim com ela...

Já carregava sua sandália nas mãos, e foi bambeando, cambaleando até o calçadão. Ela caiu diversas vezes, não sei se por causa do álcool ou por causa da areia fofa.

Todos que a conheciam, diziam que ela não podia beber que perdia o controle. Eu muito egoísta, divertia-me com a cena e ainda oferecia mais uma dose. Senti-me um monstro ao vê-la vomitando por cima dela mesma. Percebi que a cena não tinha nada de divertido...

Todos os nossos amigos já haviam ido embora, e eu não podia deixar ela sozinha ali. A pus no carro, e a levei até a casa. Levei-a pelos braços até o chuveiro. O banco dentro do box indicava que já houvera outros porres. Abri o registro, a água estava muito gelada, senti os seus músculos se contrairem e ela apertou minha mão com toda a força que ainda tinha naquele corpo.

Já não havia resquícios nem de vômito, nem de areia. A deitei na cama, acariciei-lhe os cabelos. Ela abriu os olhos ainda grogue, e me disse: “Perdão”, prometendo que aquilo não aconteceria novamente.

Eu respondi sorrindo: ”Ano Novo... Ana Nova...”...

João Freitas tem 21 anos e só veste camisa branca dia 31 de dezembro...




Nos Timpanos: Thom Yorke - Harrowdown Hill