"(...)Não te equivoques, Nathanael, ante o título brutal que me agradou dar a este livro.

Nele me pus sem arrebiques nem pudor; e se nele falo por vezes de lugares que não vi, de perfumes que não cheirei, de ações que não cometi – ou de ti, Nathanael, que ainda não encontrei – não é por hipocrisia. E essas coisas não são mais mentirosas do que este nome que te dou, Nathanael, que me lerás, ignorando o teu, ainda por surgir.

Quando me tiveres lido, joga fora este livro – e sai. Sai do que quer que seja e de onde seja, de tua cidade, de tua família, de teu quarto, de teu pensamento. Que o meu livro te ensine a te interessares mais por ti do que por ele próprio – depois por tudo o mais – mais do que por ti."

André Gide em "Os Frutos da Terra". Paris, 1927.

quarta-feira, 26 de maio de 2010

eros

"nos veremos amanhã?”
“acho que não vai dar...”
“por que?
“tenho uns trabalhos pra fazer, muita coisa pra resolver...”
“e não pode fazer isso outro dia?”
“poder, eu posso, mas vai complicar muito minha vida.”
“você sabe que esse dia é nosso, as sextas–feiras são sagradas...”
“ tá bem, tá bem. nos veremos, então.”
“sabia que eu ia te convencer dizendo que as sextas são sagradas...”
“isso não me convenceu. só nos veremos por saber que as nossas sextas são profanas...”

sábado, 22 de maio de 2010

rua méxico


foi quinta-feira passada que eu te vi atravessando por entre os carros, aquela rua que corta a av. almirante barroso que eu sempre esqueço o nome. enfim. fiquei confuso. não sabia se continuava, se parava, se retornava ou, ainda, se te atropelava. nada fiz. fiquei imóvel; incólume aos seus passos ligeiros. nada também poderia fazer já que dois carros, além do que eu me encontrava, nos separavam.

depois da sonora buzinada que eu recebi por imóvel continuar depois que o sinal abriu, eu despertei. engatei a primeira marcha; sutilmente, tirei o pé da embreagem e continuei. segui feliz. feliz, principalmente, por ter lembrado o nome da rua.

sexta-feira, 21 de maio de 2010

nico e tina

“posso te falar uma coisa?”
“cê sabe que quando você pergunta isso, eu fico sem jeito de dizer que não...”
“mas de qualquer forma, se o que eu disser te incomodar, será culpa sua.”
“fala logo!”
“cê não sabe fumar.”
“você é incrível. usa os mais esdrúxulos pretextos pra falar mal de mim...”
“não to falando mal, to só constatando. cê fuma feio...”
“fumo feio? você é um idiota.”
“é sério... já viu a elizabeth taylor fumando? você é completamente o oposto. parece uma menina de sete anos fingindo fumar um lápis. só que você não tem sete anos, aí fica ridículo.”
“ridículo é você.”
“foi por isso que eu perguntei se eu podia falar.”

terça-feira, 18 de maio de 2010

bocejo


“vamos naquele restaurante italiano que cê gosta?”
“eu fiz um miojo pra mim.”
“hum... que tal ir assistir o novo do woody allen?”
“já assisti. até que agradou...”
“lê pra mim aquele poema do borges?”
“agora, não. to com aquele pigarro na garganta, sabe? tá incomodando...”
“e aquele disco do miles davis que cê queria me mostrar...”
“ouvi esse disco umas seis vezes hoje, deixa pra outro dia...”
“vamos transar, então?”
“já transei... até que não foi ruim...”

terça-feira, 11 de maio de 2010

íris


não me acuse nunca mais de que eu me escondo atrás dos meus óculos escuros. porque isso é a mais lavada das verdades e eu acabaria tendo que te dar razão. odeio te dar razão. prefiro dizer que é tudo por causa da sensibilidade da minha íris – ahhh, íris – e das rugas de expressão que aparecem toda vez que eu franzo as pálpebras na vontade de enxergar melhor seus lábios.

além do mais, eu tenho mantido minha privacidade. você, que aprendeu tanto a ler meus olhos, fica completamente analfabeta à me encarar de óculos escuros com seus olhos escuros.

e tenho insistido nos óculos escuros inclusive nos dias nublados; simplesmente, para que ninguém ouse ver meus olhos chovendo por causa de atélogos e nuncamais.

domingo, 9 de maio de 2010

só em espécie

nunca ter te escrito as palavras mais bonitas que eu já escrevi não significa que faltou-me vontade, tampouco inspiração. acredito que mesmo se eu escolhesse as minhas mais belas palavras ainda sim ficariam aquém da beleza das coisas não passíveis de adjetivação. ou talvez, não.

muito embora eu quisesse, não vou te escrever. tais palavras não são jogadas assim, por qualquer preço; elas devem ser deliciosamente negociadas, cada vírgula - , - tem valor inestimável. não se preocupe, as suas palavras – ou seriam minhas? – virão. saiba esperar e, principalmente, negociar.

não vendo sonho fiado.

sexta-feira, 7 de maio de 2010

zeitgeist

quando dei-me conta, o seu cigarro já estava acesso. sim, eu lembro dela tirar o maço da bolsa, sacar o cigarro, mas não vi acender. não tem mais como negar meus lapsos de atenção. depois da primeira tragada. “continuando o assunto...”. como assim, continuando? onde havíamos parado? do que falávamos? enfim. “o brasil-tem-um-puta-potencial-não-aproveitado” “poderíamos ser o-país-do-futuro”. “porra, cara, é muito mais que atitude, é o espírito do tempo.” era bonito ouvir suas gírias de bandido explicando o zeitgeist – que eu nunca entendi. as palavras saindo daqueles lábios, puras, redondas, tão redondas quanto os bicos dos seus seios em alto relevo sob a amarrotada camiseta branca sem sutiã. “não, não quero amendoim.” ergueu o copo bem alto. no impulso da minha desatenção, ergui o meu também, esperando o brindar. “mais dois chopps, capitão”. baixei, meu copo. disse que não bebia. “vá se foder, moleque”. e riu. como quem me faz um cafuné.

vocabulário


“tem sido tão prazeroso que eu fico até um pouco confusa em relação ao que eu sinto.
“do que você está falando?”
“ah, sobre sensações... e... sentimentos.”
“meu bem, tudo ainda é muito recente...”
“mas é que eu acho que... eu... eu tenho certeza do que estou sentindo.”
“se for o que estou pensando, é melhor não dizer.”
“mas por que não? é tão simples, tão puro... eu...”
“não diga, por favor.”
“a vida é muito curta pra nos darmos ao luxo de nos privarmos de coisas tão belas. eu...”
“aprendamos todas as palavras, antes de resumirmo-las à uma.”

terça-feira, 4 de maio de 2010

aprendizado


meus dedos tortos tilintando sobre suas pernas transparentes de vidro era perfeito, um gesto ensaiado, uma melodia sendo tocada. um sinal claro de que algo ainda mais sublime estava prestes a começar. atavam-se abraços, extrapolavam-se corpos, devaneavam-se vidas.

eu aprendi.

não se deve, nunca, olhar fixamente para as pernas de uma mulher. ao menos que intente entregar-se por completo à elas.

sábado, 1 de maio de 2010

beijo



o gosto do desgosto não se esquece facilmente. felizmente, também não se apaga os deleitosos gostos já experimentados. e não existe absolutamente nada que impeça que o palato possa vir vislumbrar novos e distintos sabores. eis a magia. eis o espetáculo.

no teatro da boca, o áspero sempre propõe coadjuvância e faz festa quando o mise-en-scène é perfeito. é na base do improviso. não tem nenhuma demarcação. não tem nenhum ensaio.

não. também não tem hora pr'acabar.