"(...)Não te equivoques, Nathanael, ante o título brutal que me agradou dar a este livro.

Nele me pus sem arrebiques nem pudor; e se nele falo por vezes de lugares que não vi, de perfumes que não cheirei, de ações que não cometi – ou de ti, Nathanael, que ainda não encontrei – não é por hipocrisia. E essas coisas não são mais mentirosas do que este nome que te dou, Nathanael, que me lerás, ignorando o teu, ainda por surgir.

Quando me tiveres lido, joga fora este livro – e sai. Sai do que quer que seja e de onde seja, de tua cidade, de tua família, de teu quarto, de teu pensamento. Que o meu livro te ensine a te interessares mais por ti do que por ele próprio – depois por tudo o mais – mais do que por ti."

André Gide em "Os Frutos da Terra". Paris, 1927.

domingo, 26 de outubro de 2008

Não-te-esqueças-de-mim

(continuação do "Amor Perfeito")


Em uma das andanças, meu pai ouviu falar sobre oportunidades de trabalho na capital. Ele decidiu tentar a sorte e, para o meu infortúnio, resolveu levar a família com ele. Acabei, por algum tempo, perdendo contato com Nicanor, que a essa altura já tinha me ensinado as técnicas mais sofisticadas de cultivo. Com ele, aprendi como cultivar o Amor-Perfeito, e o mais importante, como preservá-lo.

Como em tantos outros arrisques do meu pai, esse também não deu certo. As oportunidades exigiam ginasial, que ele não possuía e achava que já não tinha idade para tentar ter. Logo, em pouco mais de um ano, retornamos à nossa casa.

A minha primeira providência, ao chegar, foi procurar Nicanor. Larguei as malas, ainda na soleira da porta e corri para o outro lado da rua. No primeiro instante, não me atrevi a ingressar na propriedade; contive-me em chamá-lo pelo portão. Por ter passado algum tempo sem contato, achei que a intimidade poderia ter se perdido. Gritei uma, duas, três vezes. Não tive resposta, era possível eu não estar sendo escutado. Ousei, então, abrir o portão e dar duas batidas na porta, dissonei um som contido, quase envergonhado. Continuei sem respostas. Arrisquei verificar a janela.Também estava fechada. Amaldiçoei a possibilidade de Nicanor não estar mais ali, de ter se mudado, viajado, adoecido, morrido; o que fosse, ele não poderia ter me deixado. Eu ainda tinha muito a aprender sobre jardinagem. Ainda tinha muito a aprender sobre a vida.

Voltei à minha casa, minha mãe reconheceu a tristeza no meu semblante, ou, pelo menos, sentiu a rudez com que fechei a porta do quarto. Talvez tenha pensado em consolar-me, se sim, desistiu da idéia, dando-se conta de que isso nunca funcionara. Eu, já não esperando que alguém aparecesse no meu quarto, adormeci.

Ao acordar, já no dia seguinte, ainda estava triste. Nicanor não mais estava ali. Eu sentia como se uma parte de mim também não estivesse. Os seus ensinamentos transcendiam a jardinagem, muito da vida foi aprendido com ele, nas intermináveis conversas tête-à-tête.

São inestimáveis as lembranças. Lembro-me de que era só me sentar à mesa que ele já tratava de passar um café ralo, que era tão ralo, mas tão ralo, que nem chegava a ser preto, tinha uma coloração acastanhada. Ele colocava esse líquido – que só ele chamava de café - na garrafa térmica, dando sinal que a conversa não terminaria antes do anoitecer.

No princípio, eu era um aprendiz, depois acabei me tornando um amigo, um cúmplice. Era comigo que ele partilhava todas suas fantásticas histórias, tão fantásticas que eu sentia dificuldade em atribuí-las à realidade. Mas não me preocupava muito com isso, tanto faria se fosse verdadeiro ou falso. Eu queria ouvir aquilo, queria ser entretido. Era mais ou menos um teatro. Para que a cena fluísse era imprescindível ter vontade de acreditar. Seria o que os ingleses chamam de suspension of disbelief - a suspensão da descrença. É assim que o teatro funciona, o espectador aceita a ilusão criada para o seu entretenimento. Um ator necessita que a platéia embarque na mentira, assim como uma criança precisa de outra criança para brincar de casinha. É um fingimento das duas partes: eu vou fingir que não sou eu e você vai fingir que acredita.

Tudo estava um tédio sem Nicanor. Eu fiquei mais de 2 semanas sem sair do meu quarto. Mas eis que, para a minha alegria, ele voltou. Quem me deu a notícia foi a minha mãe, ela o viu chegar quando voltava da quitanda. Ela também ficou feliz em saber que ele estava de volta, só assim surgiria alguns sorrisos no meu quarto.

Abri a porta de casa, atravessei a rua correndo. Desta vez, não pensei em chamá-lo pelo portão, invadi seu terreno, só não invadi a sua casa porque a porta estava trancada. Bati algumas vezes, aflitamente, até ser atendido. A porta se abriu, imediatamente abracei Nicanor. Ele se assustou em me ver ali, afinal de contas, eu partira antes dele.

Eu disse, quase em prantos:

_Eu achei que você tinha partido pra nunca mais. Achei que tivesse se esquecido das promessas de me ensinar mais sobre jardinagem.

_Com exceção da morte, nunca se parte para nunca mais.

_Mas e se você tivesse partido. O que seria de mim?

_Você não deve ter medo de perder as pessoas.

_Não fico feliz em ver as pessoas irem embora.

Nicanor preferiu calar-se a continuar com esta conversa subjetiva e sem veio algum. Eu li nas entrelinhas do silêncio uma mágoa muito forte. Perguntei, discretamente, se ele estava triste. Ele continuou mudo, fingindo que não me ouviu. Começou a cantarolar uma canção italiana antiga, enquanto passava um café.

Passado o café e o silêncio dissimulado, ele sentou-se a mesa. Acabou com o fingimento de não ter me ouvido, e respondeu que se ele fosse outro, estaria triste, mas por ser forte e bem resolvido apenas sente a falta.

Eu estava impaciente com aquela situação, porque ele não dizia logo tudo de uma vez? Fica nesses intermináveis rodeios que não levam ninguém a lugar nenhum, a não ser à confusão. Respirei fundo, tomei um gole de café – que estava horrível, por sinal – e perguntei.

_Falta de quê?

_Como assim ‘faltadequê”? Falta, oras...

Segurei aquelas mãos calejadas, olhei naqueles olhos amargos e falei:

_ Nicanor, tente falar. Eu sou péssimo para dar conselhos, mas sou um ótimo ouvinte.

No suspiro pesado, percebi que ele se sentia ridículo por ser consolado por uma criança. Porém, ele não tinha nada a perder. Então, resolveu abrir seu coração, que se mostrou ainda mais calejado do que aquelas mãos e mais amargos que aqueles olhos.

Nicanor confessou que há muito amou uma mulher. Era ela a mais linda e mais doce que já existiu. Ele a amou com toda força e dedicação que alguém pode amar. Porém, a vida é mais difícil do que parece e do que devia ser. Ela teve que partir. Jurou que o amava, mas tinha que ir embora. Se foi e ele nunca mais a viu. Mas sabe que eram os seus olhos azuis que se encarregavam de iluminar todos os seus dias.

Nicanor no chorar soluçante, contou que no dia da sua partida lhe deu um vaso de flores que tinham a mesma cor dos seus olhos. Era a flor não-te-esqueças-de-mim. Percebi que tal flor representava muito mais pelo nome do que por sua pigmentação.

Insisti para que Nicanor me contasse mais sobre a flor. Felizmente, para as lendas ele não tem muitos rodeios. Disse-me que a flor é conhecida mundialmente, na Alemanha ela é chamada de “Vergissmeinnicht”; na Inglaterra ,“Forget-me-not”; na Itália, "Nontiscordardimé” e mais uns cem nomes em outros cem países.

Disse que certa vez um cavaleiro medieval se esticou à beira de um rio para presentear sua donzela com a flor. Devido ao peso da armadura, acabou se desequilibrando e caiu no rio. Ainda sim, conseguiu resistir à correnteza e ofereceu a flor à sua companheira, num último suspiro, implorou para que ela nunca se esquecesse dele.

Perguntei se Nicanor tinha alguma semente dessa planta e se poderia me ensinar a plantá-la. Disse que talvez não tivesse, porque plantou algumas recentemente. Mesmo assim, Nicanor não hesitou e foi logo à sua dispensa de sementes, a fim de realizar o meu pedido. Encontrou meia dúzia de sementes e me chamou para o lado de fora da casa.

Enquanto molhávamos a terra, senti que agora era a minha vez de abrir o coração.

_Nicanor, quando pensei que você tinha ido embora, desejei que você não se esquecesse de mim. Porque de você, eu jamais me esqueceria.

_Rapaz, que diferença faria para você se eu te esquecesse ou não?

_Eu me sentiria mais importante se você não se esquecesse.

_Mas talvez, você nunca saberia se foi esquecido ou não.

Lágrimas começaram a correr dos olhos de Nicanor, umedecendo ainda mais a terra. Senti que agora era o momento de emudecer.

Passada a visível comoção, perguntei a ele sobre o motivo. Ele, sempre misterioso, me respondeu com outra pergunta:

_Lembra que falei que plantei alguns não-te-esqueças-de-mim recentemente?

_Sim.

_A mulher, que eu amei mais do que podia, faleceu, partiu pra nunca mais. Levei algumas sementes da flor para plantar sobre seu túmulo, para que onde ela estiver, saiba que existe alguém que sempre se lembrará dela.

João Freitas tem 18 anos e tem alguém para nunca esquecer.




Nos tímpanos: Bonnie “Prince” Billy – For Every Field There’s a Mole