"(...)Não te equivoques, Nathanael, ante o título brutal que me agradou dar a este livro.

Nele me pus sem arrebiques nem pudor; e se nele falo por vezes de lugares que não vi, de perfumes que não cheirei, de ações que não cometi – ou de ti, Nathanael, que ainda não encontrei – não é por hipocrisia. E essas coisas não são mais mentirosas do que este nome que te dou, Nathanael, que me lerás, ignorando o teu, ainda por surgir.

Quando me tiveres lido, joga fora este livro – e sai. Sai do que quer que seja e de onde seja, de tua cidade, de tua família, de teu quarto, de teu pensamento. Que o meu livro te ensine a te interessares mais por ti do que por ele próprio – depois por tudo o mais – mais do que por ti."

André Gide em "Os Frutos da Terra". Paris, 1927.

segunda-feira, 26 de abril de 2010

formidável


sinceramente, não distingo sua voz doce com palavras quentes da sua voz quente com palavras doces. ambas têm sempre o mesmo e irremediável efeito. violando meu ouvido, desabotoam as minhas melhores e piores intenções. nossa respiração estrondeada transcende o que é vida. com os freios da censura cortados, não há o que fazer.

e não há o que baste, e não há o que finda. há sempre o incansável transbordar de emoções. nos resta dançar ao som da nossa alma.

sexta-feira, 23 de abril de 2010

boca


à luz de priscila andrade.

e de uma vez por todas, ela entendeu. respirou fundo, mas fundo mesmo. consumiu todo o ar do quarto fechado que estávamos. a janela, tentadora, pedia pra ser aberta, mas não, eu não me atreveria a recortar tal momento com o imperceptível movimento que fosse. embora não houvesse necessidade de se dizer mais nada, sabíamos, por nosso histórico de prolixidade, que palavras ainda seriam ditas.

assaz incomodado com meu ruidoso silêncio, pedi pra que ela falasse. entre negaças, eufemismos, hesitações, breves silêncios, elipses, cruzadas de pernas, cruzadas de braços, apócopes, recuos, lapsos, esfregar de olhos úmidos, ela tentou emitir duas dúzias de palavras repletas de sentido – para alguém, não para mim.

restou-me usar a minha boca hábil para impor o silêncio, a concordância e o consentimento.

terça-feira, 20 de abril de 2010

grosseria



“é muito sério o que você tem pra falar?”
“não sei, acho que sim.”
“diga.”
“assim... é que...”
“acho melhor falar de uma vez.”
“sem dúvida. mas perdi as palavras.”
“respira fundo.”
“perdi as palavras, não o ar.”
“não precisa ser grosso.”
“não precisamos de muita coisa, meu bem.”

quarta-feira, 14 de abril de 2010

deux couleurs


ontem, extraordinariamente, foi decretado que aqueles olhos de azul inverossímil e aquela pele corada passariam a colorir o mundo. não houvera flor, sol, céu ou barato psicotrópico algum à altura para competir com seus azuis e vermelhos, mais intensos que os da bandeira da frança ou luxemburgo ou holanda.

seus dedos longos tamborilando a síncope no maço surrado de derby azul e seu campari aguado mandavam para o espaço qualquer objetivação de pensamento.

aqui ela jaz. aqui ela jazz.

terça-feira, 13 de abril de 2010

dilúvio

eu lá já estava sentado há algum tempo e por ter esperado mais do que eu esperava esperar, não me surpreenderia com nada. 7 horas e meia de chuva torrencial não foram o suficiente para lavar o que havia sido sujo. mas estiou e, antes do sol cruzar a janela de madeira semi-aberta, ela irrompeu pela porta da frente num silêncio simétrico à seu traje de luto.

sentou ao meu lado. desatou religiosamente o laço do tênis do pé esquerdo. descalçou. não difícil de prever, fez o mesmo com o tênis do pé direito. arrancou a meia encharcada. e n'um só movimento - perfeito, plástico - pôs os pés sobre o sofá, dobrando sutilmente os joelhos. na mesma liturgia, deixou a cabeça desabar no meu ombro. respirou fundo e nunca mais choveu.

sexta-feira, 9 de abril de 2010

sede


a planta dos seus pés - quentes - sobre o peito dos meus - frios - não era indelicadeza. não. era o que havíamos proposto, calados. sabíamos das veleidades do mundo e optamos por encontrar algo que desse sentido a tudo que passamos. algo que esquecesse tudo que, até então, eclipsara a nossa alma. encontramos. nós encontramos. nos encontramos.


fazes-me sede.
copo cheio.
café-com-leite frio atropelando a garganta, num gole só.
ahhhhhhh !
para, enfim, derramar tudo em meu peito.

terça-feira, 6 de abril de 2010

soslaio


não veio com flores nas mãos, mas nos seus olhos havia girassóis. da mesma maneira que não se mostra exatamente quem se é para qualquer um, a ferocidade branca do seu sorriso permanecia preservada.

não disse muita coisa. não precisava. porém, precisava todo-e-qualquer gesto meu. com seus olhos grandes – aqueles dos girassóis - telescopiava o eriçar dos pelos do meu braço. e, de fato, a virtude está em esconder o que se quer mostrar.

não, não me olhe assim.

sexta-feira, 2 de abril de 2010

só isso


como eu desejei - exatamente como eu desejei - ela passou por aqui de novo. e com os olhos da cor que já sei de cor me falou de todas confusões & devoções. coisas demais, deveras inúteis; covardia não ter deixado a língua salivar um pouco mais.

- e ai?

- não quero mais. só isso.

e ela se foi. da mesma maneira que chegou. sem pagar suas dívidas.

e, exclusivamente, para mim, eu digo:

- não quero menos. só isso.


exatamente como eu desejei.

engasgo

a ela o céu não bastava. na calçada da barão da torre, seus pés, a seis palmos já estavam do chão. e nesse passo - indo-me - fui a mastigar nuvens e a engasgar-me com o chiclete de hortelã que não tinha mais gosto.

sorrisando, eu já sábia no que ia dá.