"(...)Não te equivoques, Nathanael, ante o título brutal que me agradou dar a este livro.

Nele me pus sem arrebiques nem pudor; e se nele falo por vezes de lugares que não vi, de perfumes que não cheirei, de ações que não cometi – ou de ti, Nathanael, que ainda não encontrei – não é por hipocrisia. E essas coisas não são mais mentirosas do que este nome que te dou, Nathanael, que me lerás, ignorando o teu, ainda por surgir.

Quando me tiveres lido, joga fora este livro – e sai. Sai do que quer que seja e de onde seja, de tua cidade, de tua família, de teu quarto, de teu pensamento. Que o meu livro te ensine a te interessares mais por ti do que por ele próprio – depois por tudo o mais – mais do que por ti."

André Gide em "Os Frutos da Terra". Paris, 1927.

sexta-feira, 9 de março de 2007

(Con)sentimento



"A mulher que gratuitamente
me mostra as tetas
só quer
naturalmente
ser reconhecida"
- Caio Carmacho

Como todas as coisas têm fim, a nossa noite não podia ter sido diferente. Mesmo que tentássemos retardar o amanhecer com incessantes caricias, os inconvenientes raios de sol acabavam entrando no quarto pelas venezianas. E nas manhãs, as despedidas são inevitáveis; já estava na hora de recolher as roupas jogadas no canto do quarto, esquecer a fugaz vulgaridade, fazer a barba e dizer “até logo”.

Já passara uma semana e eu ainda não sabia o nome dela. Talvez ela tenha dito, mas não fazia muita diferença. Quando passávamos por aquela porta, nada mais era relevante. Não era eu, nem ela; éramos nós. E isso é o que importava.

As noites seguiam à batidas sincopadas do blues de Miles Davis. De vez enquanto buscávamos sorrisos dentro de garrafas e gargalhadas no vômito do fumo. Mas sabíamos que os nossos melhores entorpecentes se encontravam nas nossas gargantas secas, no encontro das nossas bocas cruas, no suor das nossas carnes e nas suas unhas cravadas em minhas costas.

E durante vinte e seis dias, os nossos encontros se sucederam desta maneira. As nossas noites pareciam cada vez mais curtas. Os seus abraços apertavam não só o meu corpo, mas também a minha alma, que a essa altura não mais se distinguia da dela.

Não nos dávamos mais por satisfeitos tendo apenas a noite como cenário, queríamos o dia inteiro. E mesmo depois de ter o Sol e a Lua como voyeurs, continuávamos insatisfeitos. Já tínhamos tudo e não sabíamos mais o que querer.

Mas para variar, acabo cometendo um daqueles deslizes imperdoáveis. E antes de pensar, a língua febril e delirante murmura ao pé do ouvido alheio: “Como se chama?”. E pronto. Já está tudo acabado.

"Só porque, de súbito exigentes e duros, quiseram ter o que já tinham. Tudo porque quiseram dar um nome; porque quiseram ser, eles que eram."
- Clarice Lispector

João Freitas tem 32 anos e prefere noite a dia.





Nos Tímpanos: Jards Macalé - Movimento dos Barcos

3 comentários:

Anônimo disse...

Muito bom. Esse texto é um exercício da nossa capacidade de desejar; é o que se deseja, mesma que não se admita.

Anônimo disse...

Corrigindo: "mesmo..."

Anônimo disse...

tá bem que eu não tinha entendido todas as metáforas, maaas, tá muito bem escrito joão :)
beijos da ávida leitora e fã incondicional do amigo aí ;*