"(...)Não te equivoques, Nathanael, ante o título brutal que me agradou dar a este livro.

Nele me pus sem arrebiques nem pudor; e se nele falo por vezes de lugares que não vi, de perfumes que não cheirei, de ações que não cometi – ou de ti, Nathanael, que ainda não encontrei – não é por hipocrisia. E essas coisas não são mais mentirosas do que este nome que te dou, Nathanael, que me lerás, ignorando o teu, ainda por surgir.

Quando me tiveres lido, joga fora este livro – e sai. Sai do que quer que seja e de onde seja, de tua cidade, de tua família, de teu quarto, de teu pensamento. Que o meu livro te ensine a te interessares mais por ti do que por ele próprio – depois por tudo o mais – mais do que por ti."

André Gide em "Os Frutos da Terra". Paris, 1927.

sexta-feira, 23 de fevereiro de 2007

Doce de Abóbora



"Se queres sentir a felicidade de amar,
esquece a tua alma"
Manuel Bandeira

Nada se equipara tanto a um romance quanto o doce de abóbora. Não falo apenas do delicioso gosto que ambos têm, mas sim de como eles se parecem em tudo. Assim como a dona de casa procura a abóbora certa para fazer o doce, eu sempre busco minha próxima alma-gêmea. Como ninguém é perfeito, de vez enquanto, a dona de casa compra uma abóbora podre e eu só consigo encontrar almas distintas. Acabamos perdendo bastante tempo nessa busca pelos ingredientes perfeitos.

Mas eis que chega o tão esperado momento. A dona de casa avista aquela bela abóbora e eu me encanto por aquela menina de rosa. Não temos dúvidas, sabemos que encontramos o que queríamos. E temos certeza que, até então, não se vira abóbora mais bela e menina mais doce.

Eu sentia quando um romance estava pronto para se consumar... Da mesma forma que a cozinheira prendada sabe quando o doce de abóbora está no ponto, eu sabia que estava a ponto de me apaixonar. E os amantes e as cozinheiras sabem muito bem que tudo tem que ser na medida certa, um pouco mais de açúcar ou de afeto pode pôr tudo a perder. Mas não basta apenas acertar na medida. Você precisa ser ousado, uma pitada de sal e um pouco de desdém pode dar um gosto especial ao doce e ao romance.

Para não desandar, você precisa pôr no fogo alto e mexer bastante. Nessa fase, você precisa ter cuidado com as moscas que, certamente, já estão ao redor. Vigie sua menina e ponha as moscas pra correr. Não se distraia, se não você acaba queimando o doce e seu filme.

A essa altura, podemos dizer que o doce já está pronto e o romance concretizado, mas não podemos saber se deu certo enquanto não provarmos. Eles ainda estão muito quentes, mas mesmo assim não resistimos, provamos um pouquinho. A pressa só me faz queimar a língua.

Agora já se pode comer do doce e saborear os lábios da menina de rosa. Quem come do doce, come até se fartar ou até então acabar. E eu só quero me afogar na saliva alheia, como se quisesse matar uma sede de 60 dias. Só me satisfazendo após sorver a última gota do néctar mais puro da amada. A dona de casa tem certeza que nunca fez um doce tão gostoso. E eu juro nunca ter amado tanto...

João Freitas tem 25 anos e acha que só existe uma coisa mais gostosa que doce de abóbora...





Nos Tímpanos: Apollo Nove - Traz um Alívio

quinta-feira, 8 de fevereiro de 2007

Contra o Tempo



"No anfiteatro, sob o céu de estrelas

Um concerto eu imagino
Onde, num relance, o tempo alcance a glória
E o artista, o infinito"
Chico Buarque

O cheiro da coxia me inebria... Acho que esse é o último e verdadeiro motivo para não ter abandonado o teatro. Depois de 47 anos em cima do palco, deixei de ser artista. Tornei-me uma daquelas pinturas à óleo que nunca secam e que o destino, agora com os pincéis na mão, se encarrega de a cada dia pôr uma ruga a mais.

O desejo de ser ator vem de antes do meu nascimento. A minha mãe fazia teatro amador e sonhava em um dia vir a ser uma famosa a triz de cinema. Talvez seu fracasso latente tenha me feito seguir essa carreira. Admirável ofício que os ignorantes julgam como ócio.

Desprezando toda a minha insistência, a sorte nunca foi alheia ao meu sustento. Não falo das catástrofes inusitadas que ocorreram durante as apresentações, porque isso acontece, pelo menos uma vez, com todos os atores. A minha insatisfação se dá por eu não ter atingido o sucesso, por estar condenado a ser eternamente um ator medíocre de teatro.

A minha decepção aumenta junto com a idade. Já estou velho para participar de “Malhação” e nem cairia muito bem um homem de minha idade ser chamado de “ator revelação”.

Acho que essa é a parte mais difícil da vida, seus sonhos não foram realizados e você já não tem mais tanto tempo para sonhar outros sonhos. Resta agora esperar minha morte e lamentar o meu não-reconhecimento.

É o final de mais um espetáculo, um daqueles cheios de clichê e que não dizem muita coisa. Só se ouve tímidas palmas, mais por educação do que por admiração. As luzes se apagam lentamente e a música termina em fade-out. Não se sabe mais o que é vida e o que é ficção.

João Freitas tem 66 anos e continuará vivendo até o espetáculo terminar...





Nos Tímpanos: Mombojó - Deixe-se Acreditar

sexta-feira, 2 de fevereiro de 2007

Meline (projeções futuras)


_ Meline Silva.

Risos na sala de aula...
_ É Milene, professor. Presente.

Pobre Milene, toda 4º feira tinha que corrigir o professor Manoel. Ela até achava “Meline” bonitinho, mas queria ser chamada pelo seu verdadeiro nome. Devia ser algum tipo de vingança; só porque ela preferia Matemática ao invés de Geografia, o professor pregava essa peça nela toda semana.

Milene sempre foi muito estudiosa, dizia que estudava muito. Mas pra mim, isso não era verdade, ela era inteligente e ponto. Os anos em que eu estudei com ela foram os mais difíceis. Ela era insuportável. Enquanto eu procurava a fórmula para resolver tal problema, ela já tinha a resposta do problema seguinte. Todos, inclusive eu, tinham algum motivo para odiá-la.

Mas mesmo assim, não conseguíamos. Ela cativava todos a sua volta, estava preste a nos ajudar em qualquer hora. Se alguém não entendesse a matéria, não era o professor que sanava as dúvidas e sim Meline... É...Quer dizer... Milene...

_ Milene, você vai prestar vestibular para que?
_ Engenharia... Ainda não sei qual, mas é Engenharia...
(Uffa, ainda bem que desistiu de Matemática)

Como não podia ser diferente, ela terminou o Ensino Médio e passou no Vestibular na 1º tentativa. E a essa altura, já estava decidido. Era Engenharia Metalúrgica, ela enchia a boca pra falar. Sua família estava radiante com sua conquista. E ela também, o orgulho de si mesma transbordava, contagiando a todos.

Para cursar sua Faculdade, ela teve que se mudar para Volta Redonda. Esse sacrifício era necessário. A abstinência de seu lar, de sua família, de seus amigos era corrosiva. A degradava a cada semestre.

Ela começava a perceber quanto tempo perdeu discutindo, brigando, se preocupando com coisas ínfimas; podendo ter aproveitado todo esse tempo ao lado das pessoas que ela realmente ama. Mas isso, ao invés de enfraquecê-la, só fortalecia. Embora sofresse com a distância, estudou para que conseguisse se formar o mais breve possível.

E conseguiu. Com 23 anos, formou-se sem perder, sequer, uma matéria. Seu magnífico desempenho na faculdade garantiu-a um emprego. Para sua felicidade, na cidade onde viveu a maior parte de sua vida. Meline se tornou Chefe de Pesquisa do Centro de Tecnologia da Refinaria de São Gonçalo e Itaboraí.

Essa engenheira chegou tão longe na vida, por que tinha suas convicções, acreditava em si mesma e que, por nenhum motivo, desistia dos seus sonhos.

Mas de fato, Milene é uma grande contradição. CDF legal? Isso existe? Sim. Claro que existe, tem até amigos.

Sou um deles!

João Freitas tem 17 anos e é vidente de vez em quando...





Nos Tímpanos: Mart'nália - Chega