"(...)Não te equivoques, Nathanael, ante o título brutal que me agradou dar a este livro.

Nele me pus sem arrebiques nem pudor; e se nele falo por vezes de lugares que não vi, de perfumes que não cheirei, de ações que não cometi – ou de ti, Nathanael, que ainda não encontrei – não é por hipocrisia. E essas coisas não são mais mentirosas do que este nome que te dou, Nathanael, que me lerás, ignorando o teu, ainda por surgir.

Quando me tiveres lido, joga fora este livro – e sai. Sai do que quer que seja e de onde seja, de tua cidade, de tua família, de teu quarto, de teu pensamento. Que o meu livro te ensine a te interessares mais por ti do que por ele próprio – depois por tudo o mais – mais do que por ti."

André Gide em "Os Frutos da Terra". Paris, 1927.

sexta-feira, 29 de dezembro de 2006

Minhas Guias



“Oi, Boneca...”, era assim que eu puxava assunto com as meninas nas festas. Logo depois, eu perguntava o nome. E depois que se sabia o nome, não tinha mais jeito, o peixe já estava na rede.

Como era bom meu tempo de moço. Essa garotada de agora não tem idéia de como os nossos bailes eram melhores, de botar qualquer festa dessas no chinelo. Eu freqüentava muito o Mirante, era um clube em que todo sábado tinha baile. Era de arrepiar, tocava uns sons novos que vinham lá de fora, James Brown, Kool & The Gang, Chic, Commodores, Earth Wind & Fire...

Tudo era motivo pra comemorar. Lembro-me que teve uma festa que eles usaram como pretexto a comemoração do dia da bandeira. Como todas as festas, essa também estava lotada. Essa festa foi ótima. Lembro-me também de ter conhecido um broto lindo de quem só me despedi na manhã seguinte...

Mas foi em uma memorável noite, daquelas que depois não nos lembramos de nada, que eu conheci aquela princesa. Não tenho certeza, mas ela devia ser muito bela, pelo menos tinha olhos lindos. Eram verdes... Não!... Eram azuis... Uhh... Eram claros, e era a coisa mais brilhante que eu já havia visto. Já fui logo usando minha tática do “Oi, Boneca”, ela disse um “oi” seco. Mesmo assim, perguntei seu nome, ela se negou a dizer... Acho que depois disso eu a beijei, mas não me lembro. Ahh, se eu não tivesse bebido tanto, poderia me lembrar daquele rosto por inteiro e não apenas daqueles olhos.

O tempo foi se passando e eu não deixei de freqüentar as festas. Estava atrás da luz daqueles olhos. Tinha parado de beber, para quando encontrasse aqueles olhos, pudesse me lembrar de todo o conjunto.

Acabei me casando, tive filhos, até que tinha me tornado um homem feliz. Mas depois da morte da minha esposa e de meus filhos estarem tão atarefados, fico aqui sentado em minha cadeira de balanço, vendo os carros passar. Adoro ficar aqui a noite, os carros passarem de faróis acessos. Fazem-me lembrar daquelas duas pedras preciosas, que se tornaram guias para o meu caminho escuro...

João Freitas tem 58 anos e a 33 não põe sequer uma gota de álcool na boca.



Nos Tímpanos: Os Mutantes - Baby

Dona Maria



Ahh... Como senti saudade de Dona Maria. Espero que ela também tenha sentido saudades minhas. Posso dizer que foi ela quem me criou, já que meus pais tinham que sair para trabalhar e ela se mostrava sempre tão solícita a cuidar do “Pequeno Estorvo”-era assim que os outros familiares me chamavam.

Aprendi muito com ela. Uma vez ela me viu chegar a casa, com o bolso cheio de balas, eu estava com um sorriso imenso, um daqueles que não se cabe no rosto. Como não podia me dar dinheiro para comprar doces, ela logo descobriu que eu tinha roubado de alguém. Mas como ela sempre foi muito sutil, o verbo “roubar” não figurou em seu vocabulário, ela só perguntou de quem eu tinha pego emprestado aquelas balas, e eu, não aprendera ainda a mentir, confessei que tinha pego lá na venda sem o seu Paulo ver. A esse momento eu já esperava uma surra, mas aquela voz suave me tocou muito mais do que qualquer chinelada, ela me disse com toda cumplicidade: “João, só queira o que é seu. Só assim se é alguém...”. Era muito criança, essas palavras não fizeram tanto sentido. Mas as guardei para que, quem sabe um dia, pudesse entendê-las.

Ela vivia em uma comunidade pobre, nunca teve estudo; não se sabe como se tornou uma mulher tão sábia. Ela dizia que era por causa do “repórti”, o jornal televisivo que ela sempre assistia. Fazia questão de dar “BuaNoiti” ao rapaz que todas as noites estava lá para informá-la. Mas ela não dizia só “BuaNoiti”; dizia “BonDia”, “BuaTarde’..., saudava os âncoras a qualquer hora que tivesse jornal.

Dona Maria tinha uma filha, nunca falava sobre ela; descobri que se chamava Luiza. Minha mãe dizia que Luiza foi uma criança linda, de lindos cabelos e com olhos que brilhavam mais do que o sol. Porém, em um dia nublado, a policia chegou atirando lá no bairro, e os olhos de Luiza pararam de irradiar tanta luz, consequentemente, os de Dona Maria também. Acho que minha presença ressarcia parcialmente a falta da filha dela. Que nada! Pretensão minha...

Eu corria incessantemente por aquele quintal, as sete da matina eu já estava de pé gritando as outras crianças para virem brincar. E eu só entrava para casa quando uma das mães botava a última criança para dentro. Sempre me sentia orgulhoso quando Dona Maria dizia sorrindo: “Nossa mãe! Como esse guri tem energia...”.

Infelizmente, eu era muito frio. Não recebia tanto carinho dos meus pais. Mas Dona Maria supria essa minha necessidade, estava lá sempre tão carinhosa a me abraçar, a me beijar. Dizia sempre que me amava, mas eu não sabia usar o verbo “Amar” e dizia: “Também gosto da senhora...” Via o descontentamento nos olhos dela, mas que culpa eu tinha? Não me ensinaram a usar esse verbo... Até tentava, mas não conseguia.

Quando minha idade passou a ter mais de um algarismo eu fui deixando de ir lá, já conseguia dar conta de mim mesmo. Mas a mútua saudade era grande, e eu passava todas as noites lá para dar “Benção”, me sentia muito bem ao ouvir o “Deus te abençoe, meu filho...”.

Tendo que conciliar os estudos com o trabalho, depois de muito esforço, consegui acabar o 2º grau. Pude me dedicar ao trabalho e acabei deixando de visitar Dona Maria. Eu tinha vontade, tinha potencial. Comecei como office-boy no Banco, mas sabia que poderia crescer lá dentro. Eu era ganancioso, uma ganância com uma conotação positiva que me permitia enxergar além do meu umbigo.

Chegou um ponto que eu já estava ganhando bem, tinha me tornado gerente do banco. E o que eu temia, veio a acontecer, a corrupção veio a me aliciar. Fui forte, neguei a generosa quantia que me ofereceram para me envolver num esquema de lavagem de dinheiro.

Senti-me bastante orgulhoso, talvez tenha entendido as palavras de Dona Maria, fui correndo a casa em que passei a minha infância. Ao chegar lá, os vizinhos me informaram que Dona Maria tinha tido um aneurisma cerebral e que estava em coma. Senti o chão desabar, temia que não pudesse confessar que tinha entendido as palavras dela, que aquilo agora fazia sentido. Mesmo descrente, eu recorri a fé; pedi a Deus, a todos os Santos, aos astros.... Queria ouvir aquela voz novamente.

Pus Dona Maria no melhor hospital da cidade. O dinheiro que eu guardava para comprar o carro do ano gastei para contratar os melhores médicos. Comprei todos os medicamentos necessários, paguei as caríssimas cirurgias. Talvez por me sentir culpado pela ausência...

Depois de uma semana de bastante aflição, e de quase me afogar no mar de lágrimas que eu havia chorado, recebi a noticia que Dona Maria tinha se recuperado. Que alívio que senti. Em pouco tempo, ela voltaria para casa...

Dona Maria já estava bem de novo, quando eu resolvi contar o que tinha acontecido e que eu tinha entendido e posto em prática os sábios conselhos. E que eu poderia botar a minha cabeça no travesseiro e dormir tranquilamente. E não tardou para que eu fosse promovido no banco, de forma licita...

Chegou o aniversário dela... Comprei uma daquelas Tevês de Plasma de 53 polegadas para presentear Dona Maria, mal cabia naquela pequena sala. E a partir de hoje, eu passo lá todas noites. Junto de minha segunda mãe, digo “BuaNoiti” ao repórter. Depois do jornal, dou a minha benção e com os olhos constantemente alvejados, digo “Eu te amo”...

João Freitas tem 41 anos e não perde um "Reporti".




Nos Tímpanos: Noel Rosa - Filosofia